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O cineasta como sonhador e migrante

Wim Wenders gosta de se desviar do caminho, mas segue as trilhas das suas histórias e está aberto para tudo que é novo. Um retrato do grande cineasta alemão

13.08.2012
Wim Wenders
Wim Wenders © picture-alliance - Wim Wenders

Há dois anos, Wim Wenders festejou seu 65º aniversário no Kino Arsenal de Berlim. Estava previsto um discurso, no qual se esperava que ele fizesse uma revisão da sua vida. Mas o que ele fez foi outra coisa. O título do seu discurso foi “65 motivos para ser grato”. Com leve ironia, mas com seriedade imperturbável, ele discursou sobre sua carreira, falando, todavia, das pessoas que ficara conhecendo, que influenciaram sua vida, cada uma do seu modo. Ele prestou reverência a proprietários de cinema desconhecidos, que o tornaram conhecido na província com o cinema de gênero e o cinema europeu de arte. Agradeceu a Henri Langlois, fundador da Cinémathèque Française de Paris, os diretores de festivais e os júris, cujas decisões deveriam se tornar trilhas seguras da sua carreira. Várias vezes, ele agradeceu algumas pessoas, como o escritor Peter Handke, que foi o primeiro (e o único) a comprar um quadro do esperançoso pintor jovem Wim Wenders e que posteriormente se tornaria seu mais importante roteirista.

No fim, Wenders só teve pouquíssimo tempo para fazer seus agradecimentos, pois os encontros, as descobertas e experiências, dos quais ele falou, significavam para ele tanta coisa, que ele não pôde parar de os narrar.  Ele demonstrou muita habilidade em sair do tema para contar anedotas com grande maestria. O público ficou quase hipnotizado. E com esperança de que seu discurso venha algum dia a ser publicado, para que se possam ler os 30 motivos que não foram mencionados. E isto apesar da certeza de que a leitura não será tão engraçada como o discurso de Wenders. No fim da noite só sobrou tempo para um curto filme. E ninguém lamentou.

Primeiros anos em Paris

As reviravoltas de Wenders através da própria vida estiveram de acordo com a sua perícia de se desviar do tema sem que sua narração perdesse a direção. Além disso, elas correspondiam com sua biografia. Ele saiu permanentemente do tema, mas de maneira muito produtiva. Nascido em 1945 em Düsseldorf, filho de um médico, ele foi educado no catolicismo e teve às vezes o desejo de ir para o seminário de padres. Mas, em vez disso, ele começou a estudar Medicina e, logo após, também Filosofia e Sociologia. Em verdade, o que ele mais fazia era pintar. E foi para Paris, para aprender a desenhar. Mas lá, Wenders se apaixonou pelos pequenos cinemas espalhados pelos bairros da cidade, onde ele acredita ter visto mais de 1000 filmes apenas em 1965. Seu discurso foi também notável de outro ponto de vista, onde o leitmotiv é o altivo desejo de “pagar suas dívidas” no local, sendo um grande admirador dos seus atores, técnicos, colegas de profissão e ídolos.  Sua visão vai além da cinematografia, abrangendo todas as artes. Wenders tem profundo respeito por artistas, sobretudo pelos músicos. Um dos primeiros filmes foi dedicado a John Coltrane. Chuck Berry foi convidado para interpretar um pequeno papel em “Alice nas Cidades”. Rodando o “Buena Vista Social Club”, ele contribuiu para a popularidade mundial da música cubana. Com “O Céu de Lisboa“, ele tornou famosa na Alemanha a banda portuguesa Madredeus. Em um  documentário, ele imortalizou a banda BAP de Colônia. Seu mais recente filme “Pina” é uma consequência dessa conduta em sua obra e, ao mesmo tempo, seu ponto culminante. É a prova de uma amizade, de uma fraternidade espiritual que une diferentes disciplinas artísticas. A tematização da obra da coreógrafa Pina Bausch parece sugerir que Wenders se lembrou de que o cinema para ele é uma arte de silêncio e movimento no espaço. Quando os dois começaram a trabalhar juntos na obra cinematográfica, eles não sabiam que esse filme deveria se tornar um réquiem para a grande dançarina. Depois da morte repentina de Pina, Wenders teve que preencher uma profunda lacuna na realização do trabalho. Ele o fez com prudência e respeito. O slogan de propaganda de “Pina” cita sua heroína: “Dancem, dancem, pois do contrário estamos perdidos!”. A arte é um elixir teimoso que contradiz a morte.

Estilo inconfundível

Entre os representantes do Novo Cinema Alemão, cujos filmes andaram pelo mundo na década de 1970, Wenders assumira, já desde o começo, um papel extraordinário. Faltavam a ele o poder melodramático de Rainer Werner Fassbinder, a severidade intelectual de Alexander Kluge e a ambição metafísica de Werner Herzog. Mas seu estilo é ao mesmo tempo inconfundível e obstinado. Em vez de uma ação convencionalmente construída, seus filmes apresentam uma riqueza de atmosferas e observações. Seus primeiros sucessos, como “Alice nas Cidades” e “No Decurso do Tempo“ traçam a imagem privada e as histórias íntimas de uma Alemanha que, trinta anos após o término da guerra, estava em busca das raízes do seu futuro. Os primeiros heróis de Wenders procuram uma liberdade que antes pode ser encontrada em uma permanente solidão. Eles representam um legado do romantismo, na medida em que trilham caminhos que levam tanto para o exterior como para o interior. Para eles, a liberdade e a pátria são uma contradição insolúvel que os impele ao desconhecido. Neles se reflete o desejo do cineasta de ser um migrante. Ele tinha receio de que sua imaginação estagnaria se ficasse em um só lugar. Para ele, um diretor de cinema é, em primeiro lugar, um sonhador e um migrante. Ele tem que ir em busca de suas histórias.

Homenagem ao sol do deserto

Não é por acaso que a primeira firma de produção de Wenders se chamou “Road Movies”. Lugares lhe contam histórias, diz ele. Segundo alguns críticos, as paisagens são frequentemente o mais interessante nos seus filmes. Muitas vezes, a câmara continua enfocando os cenários, depois dos personagens já terem deixado a cena há algum tempo. Este enfoque é mais nítido ainda na sua obra como fotógrafo. De instrumento de pesquisa e busca de cenários ela passa a ser uma forma autônoma de expressão. A maioria das paisagens (urbanas), que ele fotografa, mostra lugares baldios, abandonados pelos seus moradores. Wenders procura nestas fotos uma pureza paradoxal.

Os EUA são o palco desejado dos seus filmes e da sua vida. As pinturas de Edward Hopper deixaram marcas bem claras na sua cinematografia, fascinada pela magnificência das paisagens, dos horizontes abertos e profundos e dos mares de luzes das metrópoles. “Paris, Texas” é uma única homenagem à reluzente luz solar dos desertos, onde, todavia, a América não é mais a terra prometida, nem o jardim do paraíso. Wenders aprendeu que a mobilidade sem limites não é o mesmo que liberdade. Ele conhece muito bem os EUA, pois viveu lá dois longos períodos. “Não se podem comprar olhos”, é o que diz um dos primeiros filmes de Wenders. Mas talvez se os possam merecer.

Na tradição do cinema de autor

Ele luta contra a corrupção das imagens, contra o poder de sugestão dos blockbusters de Hollywood. Wenders roda filmes decididamente sem agressão. Sua composição concede espaço ao espectador. A velocidade da sequência das suas composições permite que o espectador pense ativamente. Assim, ele segue a tradição do cinema de autor. Sua obra reluz entre o respeito pela história do cinema e a franqueza frente a transformações estéticas. Wenders se expõe aos olhos do presente. Wenders é aberto para inovações. “Alice nas Cidades” é o primeiro filme, no qual a fotografia Polaroid desempenha um papel. Em “Hammett”, ele experimentou com processos eletrônicos de filmagem. “Buena Vista Social Club” é o primeiro filme que
foi todo rodado em tecnologia digital. Em “Pina”, Wenders se dedica ao filme 3D, com uma curiosidade fascinante, mas também céptica.

Para muitos críticos, este foi até agora o melhor filme a ser rodado em 3D, o que é um argumento convincente de que essa técnica não é apenas moda passageira. Desde 20 anos, esse cineasta queria rodar um filme com e sobre Pina Bausch, mas foi só com o aperfeiçoamento da fotografia estereoscópica de filmagem que ele teve a sensação de fazer jus ao trabalho da dançarina. Ele não somente celebrou a arte de Pina no palco, mas também a levou além de Wuppertal, a cidade natal da artista, ao teleférico, a uma velha mina de carvão. Wenders faz o espaço cinematográfico dançar. Não foram poucos críticos que ficaram surpresos que o cineasta tivesse essa ousadia imponderável. Mas Wim Wenders sempre soube surpreender os outros pelo seu modo de ser fiel a si mesmo. ▪

Gerhard Midding é jornalista de cinema em Berlim e trabalha para diversos jornais diários, revistas especializadas, para a televisão e a rádio, tendo cooperado em muitos livros de filmes.