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“Existe uma crise, mas não na Europa”

Filippo Grandi, comissário da ONU para refugiados, falando sobre migração e fuga e a politização do debate.

26.03.2019
Filippo Grandi
Filippo Grandi conhece a realidade da vida dos refugiados © REUTERS/Thomas Mukoya

Filippo Grandi trabalha já há 35 anos com refugiados. Falamos em Genebra com o alto comissário da ONU para refugiados.

Senhor Grandi, já há muito tempo se vem falando na Europa sobre a crise de refugiados. Na sua opinião, existe realmente uma crise?

Sim, existe uma crise, mas não na Europa. Estive recentemente na África. Lá existe a crise. E não ­somente uma, mas muitas. Os Estados pobres do mundo acolhem mais de 80 por cento de todos as pessoas violentamente deslocadas. A Europa teve em 2015 e 2016 um crescente número de refu­giados, em primeiro lugar como consequência da guerra civil na Síria. O agravamento da situação na Síria e a redução de apoio aos refugiados nos ­países vizinhos geraram um mercado de traficantes de refugiados. Durante dezenas de anos, a Europa teve um bom sistema de asilo, mas que era só para poucas pessoas. Quando esse sistema faliu, surgiu na Europa a impressão de uma crise que era muito maior do que a situação real.

A Europa aprendeu das suas experiências?

A Europa ainda não está preparada. A UE não aproveitou a recente queda do número de refugiados ­para reformar o Sistema Dublin, para fazer um acordo ­sobre as quotas ou mesmo sobre o procedimento quanto aos refugiados resgatados no Mediterrâneo. Se mais refugiados tivessem vindo, teria havido uma nova crise tanto na percepção das pessoas como na realidade. Existem aqueles políticos e partidos que são a favor da construção de muros e do fechamento de fronteiras e tiram muito proveito de toda essa confusão. Estou convicto de que eles não querem ­solução nenhuma. Eles só querem que tudo permaneça incerto, para que eles possam ser vistos como salvadores da Europa, o que eles não são.

Angela Merkel mostrou que um país pode acolher muitas pessoas e cuidar delas, caso for necessário.
Filippo Grandi, comissário da ONU para refugiados

Na sua opinião, qual é o papel da Alemanha?

A chanceler federal alemã Angela Merkel foi criticada por muitos por não ter fechado as fronteiras alemãs em 2015. Penso que ela tomou na época a decisão correta. Ela mostrou que um país pode acolher muitas pessoas e cuidar delas, quando isto for necessário. A maioria dos refugiados vinha da Síria, fugindo de uma guerra que a Comunidade Mundial não podia solucionar politicamente. Merkel não recebeu o apoio do resto da Europa, o que provocou uma contrarreação na Alemanha. Mas o governo federal alemão ainda continua mantendo até hoje posições muito lógicas. Algumas leis foram restringidas, mas com menos intensidade que em outros lugares. A Alemanha ainda continua indicando o caminho a ­seguir e continua sendo um importante defensor da solidariedade na Europa. E este país ainda é, de longe, nosso segundo mais importante doador bilateral, o que nos possibilitou ampliar nosso trabalho, principalmente na África e no Oriente Médio.

Durante a sua presença no Conselho de Segurança, a Alemanha prioriza a questão da redução dos ­motivos de fuga. Qual é a importância desse tema?

Não se pode impedir uma pessoa de fugir, se ela ­tiver de salvar sua vida ou procurar segurança. Mas se conseguirmos estabilizar a situação nas regiões em guerra dos países vizinhos – pois é delas que vem a maior parte dos refugiados de guerra –, então estou seguro de que muitas dessas pessoas decidiriam ficar no seu país. Para tanto, seria necessário fazer muito mais nesses países, principalmente com respeito às perspectivas, pois se trata de educação e formação, de suficientes meios alimentícios, de ajuda financeira e de acesso ao sistema de saúde. É também necessário prestar ajuda aos países que acolhem tantos refugiados. Um exemplo seria contribuir para a construção da infraestrutura necessária. Os efeitos nesses países são muito maiores do que em qualquer país europeu.

Como isso se manifesta?

Os refugiados não são um tema apenas na Europa, mas também na Tanzânia, no Líbano ou na Etiópia. Estes três Estados fazem muito em prol dos refugiados, mas essa humanidade tem seu preço. Nós tendemos a ter uma visão colonialista dos fatos. A Europa pode acolher alguns refugiados – mas de preferência os que têm a melhor qualificação – e o resto pode ficar onde está. E pensamos que isto causa menos problemas. Mas não é certo, pois a maioria dos países que acolhem muitos refugiados quase não tem ­recursos para os manter. E, além do mais, a sua própria população passa necessidades. Que esses países prestam ajuda aos refugiados não é uma coisa óbvia.

É agora mais difícil reconhecer a diferença entre ­refugiado e migrante?

Isso se tornou mais complexo. Infelizmente são os traficantes que frequentemente decidem quem pode fugir ou não. Para eles não existe nenhuma diferença, surgindo, então, grupos mistos. A segurança nas fronteiras provocou um enorme aumento de atividades dos bandos de traficantes de refugiados. Os migrantes abandonam seus países por necessidade, por causa da pobreza ou em busca de novas chances. Mas os refugiados fogem da guerra ou da perseguição. E se eles são mandados de volta a seus países, eles correm risco de vida. Por isso, os refugiados têm de ser tratados diferentemente, o que é muito fácil através de um procedimento de asilo.  Tudo se torna mais difícil se essas pessoas abusam do sistema de ­asilo, o que acontece sobretudo na Europa. Nestes casos deveria haver procedimentos que pudessem permitir que as pessoas sem direito a asilo possam ­retornar humanamente aos seus países. Para tanto, a Europa precisa de um gerenciamento de migração unificado e muito bem pensado.

 

Depois de 35 anos de trabalho com refugiados, o que ainda me comove é o poder de resistência e a dignidade dessas pessoas.
Filippo Grandi, comissário da ONU para refugiados

Em dezembro de 2018, a Assembleia Geral da ONU aprovou o Pacto Global para Refugiados. Como esse pacto poderá melhorar a situação?

Tradicionalmente, as crises de refugiados são vistas como desafios puramente humanitários. Mas, dado que os conflitos estão durando cada vez mais, existem os refugiados que, subjetivamente, parecem ­permanecer uma eternidade. Pense nos afegãos, nos somalis, ou nos sírios, cuja permanência já dura oito anos. Ajudas humanitárias só podem ser feitas nos primeiros anos, decaindo nos anos posteriores. O que resta é uma classe de desfavorecidos, a perfeita clientela dos traficantes de pessoas. Empregando agora o Pacto Global, os atores da ajuda ao desenvolvimento, como o Banco Mundial e os setores privados, são integrados nesse processo. Eles nos devem ajudar a sair do puro abastecimento com barracas e medicina, para investir também na formação, na economia, na agricultura, no abastecimento ener­gético ou no meio ambiente locais. É um plano excepcional para tratar da situação dos refugiados. Mas essa imagem é incerta. Fico preocupado quando se trata da repartição de encargos.

O senhor é o mais alto diplomata nas questões de refugiados. É difícil para o senhor conter a sua ­irritação?

É dificílimo, pois a retórica é muito inadequada e irracional. O número de refugiados é grande, mas é um problema solucionável. Se considerássemos o terror que provoca a fuga dessas pessoas, todos teríamos de compreender que eles precisam da nossa ajuda coletiva. É impossível travar um debate sensato, pois o tema é então politizado.

O senhor fala muito com os refugiados. O que o impressiona mais?

É o puro horror que alguns sofreram, como as atrocidades inimagináveis que os familiares da minoria étnica Rohingya, de Bangladesh, me contaram. Algumas histórias me destroçam o coração, como a de um médico venezuelano que tem de vender coisas no mercado para poder sobreviver. Isso nos mostra a dimensão dessa crise, da qual ele teve de fugir. O que ainda me comove, depois de 35 anos de trabalho com os refugiados, é, talvez mais do que antes, o poder de resistência e a dignidade das pessoas em fuga. Não é absolutamente nada como aqueles, que querendo nos enganar, dizem que os refugiados querem abusar do nosso bem-estar. Ao contrário: a maioria deles quer fazer algo e ajudar os outros, até que finalmente a paz domine e eles possam retornar aos seus lares.

Entrevista: Marc Engelhardt

© www.deutschland.de

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