Entrevista do relator especial da ONU, Heiner Bielefeldt
O relator especial da ONU sobre o conceito e a prática dos direitos humanos.
Professor Bielefeldt, que importância tem o conceito dos direitos humanos para a autocontemplação da Alemanha?
O Artigo 1 da Lei Fundamental da Alemanha começa com a frase “A dignidade da pessoa humana é intangível”. Este artigo representa um recomeço básico – não apenas em comparação com o regime ditatorial do nazismo, mas também em comparação à Constituição de Weimar. Trata-se de deixar claro, logo no primeiro artigo, que a política tem de orientar-se obrigatoriamente em padrões dos direitos humanos, que também podem ser impostos por via judicial. Os direitos humanos constituem o “leitmotiv” da Lei Fundamental, eles formam substancialmente a identidade da ordem constitucional.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, de 1948, é só alguns meses mais velha que a Lei Fundamental da Alemanha. Como o conceito dos direitos humanos mudou desde então?
Também os direitos humanos evoluem. Mas existem elementos de continuidade. Sobretudo a dignidade humana, como princípio que se sobrepõe a tudo. Além disto, podem ser citados outros princípios, que formam o conjunto dos direitos humanos, como liberdade, igualdade, solidariedade. As mudanças são registradas tanto no tocante ao conteúdo, como no que se refere às instituições. Ao conteúdo foram acrescentados novos aspectos – por exemplo, a proteção de dados pessoais, que ainda não eram relevantes há mais de 60 anos. Dos novos direitos humanos também fazem parte os direitos dos deficientes como parte integrante da proteção contra discriminação, ou os direitos de reconhecimento da orientação sexual e da identidade de gênero. Isto ainda não se impôs em todo o mundo, mas já chegou há muito nas Nações Unidas. Os direitos humanos podem ser descritos como um aprendizado e, ao mesmo tempo, como um processo de formação das instituições. Nos últimos anos, por exemplo, deu-se assim um enfoque bem mais forte à prevenção.
Que resultados foram obtidos até agora com a prevenção?
A ação preventiva é um modelo bem-sucedido, pois não apenas reage às queixas, mas inclui também uma monitoração estrutural sem aviso prévio de setores de risco: comissões independentes visitam prisões, instituições psiquiátricas e, recentemente, também os asilos de velhos. Esta é uma ação estrutural que gera uma consciência importante e também pode ser muita efetiva na prática.
A validade universal dos direitos humanos sempre volta a ser contestada. Ela é vista por alguns como um “produto do Ocidente”. Como o senhor responde a tal acusação?
Surpreendentemente, fui defrontado com ela em frequência muito menor do que esperava. No debate acadêmico, ela acontece de forma mais acentuada que na diplomacia internacional. Os direitos humanos não são nenhum produto do Ocidente, mas sim o resultado de uma complicada história de aprendizado, de transcurso frequentemente conflituoso, na qual os diversos países e regiões também fazem valer as suas diferenças. Naturalmente, esta história de aprendizado não ocorreu ao mesmo tempo em todas as regiões mundiais, mas ela não é de forma alguma um monopólio do Ocidente. Os direitos humanos são, afinal, uma resposta à crise dos aguçados processos de pluralização, que podem ser observados em todo o mundo.
Também no Ocidente, os direitos humanos tiveram de ser conquistados. O senhor tem esperança de que, um dia, o conceito dos direitos humanos venha a obter um reconhecimento mundial?
Ele já tem um reconhecimento mundial – pelo menos a aprovação abstrata já existe. Mas não se pode ser ingênuo, em parte trata-se aqui de afirmação da boca para fora. A retórica dos direitos humanos é, às vezes, ambígua. Trata-se agora de lidar de maneira adequada com esta ambiguidade, envolver os países na retórica dos direitos humanos, avaliá-los conforme suas próprias declarações, transformando tais declarações em normas obrigatórias e explícitas. Para isto é importante a criação de instituições de monitoração, grêmios regulares, nos quais isto é negociado. Estamos agora passando por este processo.
Qual é o instrumento mais forte para impor o respeito dos direitos humanos?
Não sei se seria sensato fazer um “ranking” de tais instrumentos. Quando países se fecham a qualquer tipo de cooperação, constatamos os limites da efetividade de maneira, às vezes, até mesmo brutal. Então não se pode lograr realmente nada. Esta realidade, nós temos, inicialmente, que aceitar ainda que seja de mau grado. Então, tudo vai depender, no fundo, de que se lance mão do instrumentário em toda a sua extensão. Trata-se da ação concertada de muitas instituições nos mais diversos níveis. Sem o engajamento da sociedade civil, tudo isto é em vão; sem a imposição judicial, a proteção dos direitos humanos permanece sendo apenas um corpo incompleto e sem a divulgação pela mídia, também não pode funcionar. Necessitamos de uma sinopse de todas estas instituições, das formais e das que são menos formalizadas.
Recentemente, houve discussões em que se contrapôs a liberdade religiosa e a liberdade de opinião. Como o senhor vê a relação entre estes dois direitos?
Fundamentalmente, é uma relação de sinergia. É claro que ela encerra ocasionalmente o risco de atritos. Mas seria errado e até mesmo perigoso, atribuir um antagonismo essencial entre as duas coisas. A liberdade religiosa é frequentemente mal-entendida. O nome sinaliza que se trata de valores religiosos e de práticas religiosas. Resguardados não são, contudo, a verdade religiosa e a tradição religiosa, mas sim as pessoas na sua liberdade. O sujeito da liberdade religiosa, como de todos os outros direitos humanos, é a pessoa humana, como um ser inteiramente complexo, que possui convicções religiosas, convicções ideológicas e que valoriza as práticas ligadas a isto. Não pode ser tarefa do Estado, proteger determinadas práticas religiosas como tal ou, até mesmo, proteger a honra da religião, mas deve sim tratar da dignidade, liberdade e igualdade das pessoas. Somente através da transmissão pelas pessoas, é que as religiões tornam-se visíveis com seus conteúdos, rituais e práticas.
Que resultados da política de direitos humanos o senhor mais admira?
A mim impressionam principalmente as pessoas que não se deixam desencorajar e que, mesmo sob condições ameaçadoras, engajam-se pelos outros, assumindo assim um grande risco. Faz parte do lado fantástico da minha tarefa, encontrar sempre tais pessoas. Isto gera a esperança de que se possa realmente avançar com os direitos humanos. ▪
Entrevista: Janet Schayan
PROF. DR. HEINER BIELEFELDT
O relator especial das Nações Unidas sobre as liberdades religiosa e ideológica é titular das cátedras de Direitos Humanos e de Política dos Direitos Humanos na Universidade de Erlangen-Nuremberg. Entre outras coisas, o teólogo, filósofo e historiador, nascido em 1958, é especialista em teoria e prática dos direitos humanos, bem como em História da ideologia política e em filosofia intercultural.